Qual é a relação dinâmica entre o que chamamos de “eu” e a mente de cada indivíduo como um todo?
A noção de “eu” surge em geral entre dois e quatro anos de idade, quando a experiência psicológica começa a ganhar peso e densidade concretas. Em última instância, a noção de “eu” é algo que nasce quando o indivíduo se insere em determinado ambiente cultural, e aprende a sobreviver nele. O budismo e a filosofia esotérica consideram a noção de “eu” como uma realidade relativa, uma criação psicológica, tecnicamente “maya”, ou seja, algo ilusório, porque passageiro ou impermanente.
De fato, na vida adulta, um buscador da verdade cuja alma seja experiente terá momentos cada vez mais profundos e frequentes em que a noção de “eu” é transcendida ou “esquecida”. Ao longo da vida, a adoção da prática de ideais nobres, o hábito do pensamento abstrato, a contemplação filosófica e mesmo o simples amor profundo por alguém fazem com que a mente do indivíduo transcenda, ainda que parcialmente, a noção de “eu”.
A percepção de que existe um “eu” pessoal, e de que ele é diferente e independente dos outros seres vivos, surge na criança ao mesmo tempo que ela adquire uma boa coordenação dos seus cinco sentidos, e quando ela já tem uma certa noção de “memória pessoal”.
Assim, o “eu” poderia ser definido por nós como aquele centro da consciência que coordena as ações concretas do indivíduo, e que faz isso com base no funcionamento dos cinco sentidos. O “eu” coordena, pois, o uso dos cinco sentidos, e interpreta as informações vindas através deles. Mas, além disso, o “eu” também funciona com base na memória pessoal. É essa memória que lhe dá um sentido de continuidade como indivíduo. Esta memória oferece ao eu pequeno uma percepção de história pessoal a preservar – e a melhorar. Sem dúvida, em certos aspectos o “eu” deseja transformar ativamente esta história, diminuindo o sofrimento e aumentando a felicidade. Entre os enigmas que a vida coloca diante do pequeno “eu” está o seguinte:
“Como alcançar com a maior eficiência possível a meta de evitar o sofrimento e alcançar a felicidade?”
À medida que cresce em experiência e em compreensão da vida, o pequeno “eu” se ampliará. Ele aprenderá a olhar por cima e para além dos seus pequenos muros de autodefesa psicológica. Perceberá a sua silenciosa essência interior, que é o “Verdadeiro Eu”, também conhecido como “eu superior” ou “alma imortal”. E saberá que este Mestre interior é, na verdade, apenas uma “individualização” da Lei Universal do Equilíbrio e da Verdade. Este Verdadeiro Eu está em harmonia com todos os seres, e saber disso é inquietante e desafiador para aquele pequeno eu que prioriza a autodefesa psicológica.
Ao longo da vida, o pequeno eu impermanente aprende, pouco a pouco, a ouvir a voz sem palavras do grande Eu maior e imortal.
Ele se coloca a serviço daquele Verdadeiro Eu e aprende que a morte não existe, ao compreender a lei cármica e cíclica da fraternidade universal de todos os seres. Ele descobre que, na vida, como enunciado na lei de Lavoisier, “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma, tudo se recicla”.
A partir deste ponto o pequeno eu continua sendo um coordenador das atividades “pessoais” que dependem da vida biológica e corporal, mas, conhecendo seu papel dentro do contexto maior, ele percebe que tem uma chance única de obter o máximo de sabedoria enquanto ainda está vivo nesta mesma existência física.
Então o tempo que ele tem disponível passa a ser precioso. Metas pequenas, iluminadas por luzes falsas como dinheiro, posição social, apegos familiares e coisas semelhantes, perdem o charme e o encanto “mágico” diante desse Pequeno Eu Renovado. É possível que este despertar ocorra em meio a crises, “derrotas” e “desilusões pessoais”. O pequeno eu descobre agora o “verdadeiro poder”: o poder que o faz “parecer nada aos olhos dos outros”, como ensina o clássico teosófico “Luz no Caminho”, publicado no Ocidente por Mabel Collins.
Por que motivo é necessário este processo de perdas e de aparente insignificância pessoal? A resposta é simples.
O fato de que o Pequeno Eu volta o seu olhar para as coisas permanentes funciona na prática como se ele abandonasse as coisas terrestres e pequenas; e isso provoca as perdas e desilusões ou derrotas. Ele “não está mais ali”, para manter e preservar a vida aparente daquelas ilusões passageiras. Seu magnetismo e sua alma estão em outra dimensão. O processo é normalmente doloroso, do ponto de vista do Pequeno Eu, e por isso é chamado de “provações e testes do caminho”. Assim, uma famosa oração atribuída a São Francisco de Assis afirma:
“É morrendo que se nasce para a vida eterna.”
O Novo Testamento descreve o mesmo processo como se fosse uma “crucificação”. Para o clássico cristão “Imitação de Cristo”, este é “o caminho da cruz”.
De fato, o “eu” pequeno deve morrer para o mundo pequeno. Só assim ele pode renascer no mundo celeste, no plano abstrato e contemplativo, e navegar no mundo grandioso daquela Verdade Universal que não oscila com as marés do tempo de curto prazo. Isso é chamado de “ressurreição”, nas parábolas da tradição cristã.
Quando o Pequeno Eu encontra sua felicidade no ato de participar livre e ativamente do Todo Maior da Vida, finalmente a sua felicidade passa a ser uma realidade durável, incondicional, ilimitada.
Comentários
Postar um comentário