Máscaras: Bacia Amazônica

 "Movimentos      artísticos      importantes
 como Impressionismo, Expressionismo, Surrealismo
  e    Cubismo,    reconhecidos    por    seu    interesse    em
 relação  à   arte   não-ocidental,  sempre   ignoraram
 os     índios     da     floresta     amazônica"


Até pouco tempo atrás, a arte indígena dos povos do assim chamado Novo Mundo não existia nem mesmo para os artistas ocidentais da arte contemporânea do início do século XX. Os impressionantes objetos fruto da visão de mundo dos índios que habitam as Américas, desde a floresta tropical da América do Sul até a América do Norte, eram desvalorizados e pouco conhecidos. De acordo com Peter Roe, os responsáveis por esta atitude são os “cânones míopes” da arte ocidental. Embora imediatamente nos lembremos do grande interesse do Surrealismo em relação à arte indígena, no Novo Mundo seu foco foi mais direcionado aos esquimós do norte do Canadá e Alaska (Max Ernst interessou-se pela arte dos índios das áreas desérticas do sul dos Estados Unidos). Portanto, até mesmo os surrealistas podem ser encaixados na crítica de Roe (com a possível exceção do poeta e dadaísta francês Benjamin Péret [1899-1959], que viveu no Brasil entre 1929 e 1931; contudo, seu grande interesse pelos índios do Brasil não foi suficiente para levantar recursos para uma viagem pelas comunidades indígenas; seus artigos a respeito do Candomblé, entre 1930 e 1931, são considerados um marco nos estudos afro-brasileiros, inclusive precedendo os trabalhos de Gilberto Freyre e demais africanistas brasileiros) ***. Ainda de acordo com Peter Roe, infelizmente os materiais utilizados pelos índios da floresta amazônica (sementes, penas, cascas de árvores, cabelo, asas de besouro, dentes de animais), além de perecíveis não se encaixavam nas noções da tradição ocidental - embora também saibamos que a arte africana sofreu o mesmo tipo de resistência, seus materiais eram menos perecíveis. A arte ocidental, Roe insiste, só chamava de “arte” algo que fosse refinado (ouro, prata, pedras preciosas) ou monumental (mármore, baixo-relevos em bronze e esculturas de madeira tridimensionais), e deveria ser estático, fixo e sem utilidade. Em resumo, se não fosse uma estátua de bronze ou mármore, ou uma pintura a óleo com moldura enfeitada, não seria considerado arte (1). (imagem acima, a máscara Ypé [Upé], dos índios Tapirapé, representa os Kayapó e Karajá)



Seja máscara ou panela, para os índios 
Mehináku  elas  só  estarão  completas  quando
devidamente     decoradas.     Uma     máscara     só 
 adquire    os    atributos     dos     espíritos    que 
representa   quando   estiver   pintada (2)


Com exceção da arte escultórica e monumental das civilizações andinas e da América Central, ou, possivelmente, as esculturas em madeira (os grandes totens) das culturas da costa do Oceano Pacífico na América do Norte (a costa noroeste), os artefatos dos índios americanos têm sido considerados meras curiosidades etnológicas. Para Peter Roe, é digno de nota que, nos museus, ao invés de exibições mais nobres, essa produção geralmente seja colocada junto a fósseis de dinossauros e animais empalhados. Uma coisa é certa, de fato, insistiu Roe, salta aos olhos que as ondas artísticas revolucionárias do início do século passado no Ocidente como o Impressionismo, Expressionismo, Surrealismo e Cubismo (que apresentaram a arte africana e oriental para a arte ocidental), tenham deixado as contribuições dos índios da Amazônia praticamente intocada. Evidentemente essa crítica de Roe, ainda que bem intencionada, pode acabar como apenas mais um canal de incorporação da cultura material da floresta tropical sul-americana no mercado de arte. Considerando o caso dos índios da Amazônia, é razoável concluir que em todo esse desconhecimento a respeito de sua cultura material, a fabricação de máscaras rituais seja um aspecto desconhecido e negligenciado. (imagem acima, Índio Ticuna, Belém do Solimões, Terra Indígena Évare I, Amazonas. Foto Frei Arsênio Sampalmieri, 1979)


“Máscara. Entendemos por esse termo – empregado, geralmente, como sinônimo de indumentária ritual – os disfarces de dança que personificam entes sobrenaturais antropomorfos e zoomorfos. No presente contexto, a palavra máscara indica todo o traje e não apenas a ‘cara’. Isto é, inclui a veste tubular de líber, a gola e o saiote de palha, ou a veste trançada que cobre a quase totalidade do corpo do dançarino (...). As máscaras do alto Xingu encarnam entidades aquáticas, sobretudo peixes, sendo de um modo geral feitas aos pares: macho e fêmea. Em outras tribos, são concebidas como receptáculos das almas dos mortos, espíritos de plantas e animais, seres mitológicos, demônios ou fenômenos da natureza. (...) Distinguimos os seguintes macrotipos: 1) máscaras trançadas, registradas entre os diversos grupos do tronco Jê (Timbira, Kayapó, Xerente, Xavante), índios do alto Xingu, Karajá e Tapirapé; 2)máscaras de líber encontradas nos rios Japurá, Solimões e no noroeste amazônico (Juri-Taboca [extintos], Tukúna, índios do alto rio Negro); 3) máscaras tecidas (alto Xingu, alto rio Negro); 4) máscaras com ‘cara’ de madeira (alto Xingu, Tukúna, Tapirapé); 5) máscaras com ‘cara’ de cabaça (alto Xingu, Kaxináwa, Timbira); 6) máscaras compostas de capuz, calça e camisa (alto Xingu, Xikrin). Do ponto de vista geográfico, as três principais áreas de ocorrência de máscaras são: 1) norte do Amazonas; 2) alto Xingu; 3) Tocantins-Araguaia” (3) (imagem acima, à esquerda, máscara antropomorfo dos índios Tukúna; à direita, máscara antropomorfa do rio Uaupés, tributário do Negro feita de líber, índios Wanãna [Kotiria?] e Kobéwa, fotos Pedro Lobo)



Vá e Veja: O Olhar Estrangeiro



Ao  contrário  dos
artistas, os antropólogos 
europeus e norte-americanos 
tinham       grande       interesse
pela   arte   indígena  amazônica,
montando    grandes     coleções
desde o século XIX. Na verdade,
as coleções começaram assim 
que   o   chamado   Novo 
Mundo foi invadido (4)

As máscaras sempre foram elemento relevante nos rituais dos índios da América do Sul. Francisco de Orellana se referiu ao uso de máscaras nos rituais que presenciou nas comunidades amazônicas que visitou no início do século XVI. Em 1557, Hans Staden descreveu sua estadia de dez meses entre os Tupinambás, onde observou um único ritual com máscaras, impressionou-se com a decoração corporal e a plumária dessa tribo.


O zoólogo alemão Johann Baptist von Spix (1823-1891) viajou pelo rio Solimões, perto da cidade de Tabatinga assistiu a uma cerimônia de iniciação feminina entre os Tukúna (Tükúna Tikuna, Tukuna, Maguta), na qual dançarinos mascarados desempenhavam importante papel. O naturalista inglês Henry Bates descreveu uma cerimônia com mascarados que assistiu entre os Tukúna em 1857. Anos mais tarde, Henri Coudreau se referiu a máscaras confeccionadas com fio de pelo de macaco e cabelos humanos nos ritos de iniciação masculina entre os Tariâna, grupo Aruak, do rio Uaupés. Suas observações foram confirmadas no início do século XX pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg, cujas descrições das tradições mascaradas entre os Tariâna, Kobéwa, e diversos grupos de idioma Tukano do noroeste amazônico representam, hoje, valioso subsídio à pesquisa do ritual (5). (imagem acima, máscaras de morcego vampiro, índios Piaroa-Huarine)


Quando comparamos a divulgação da imagem
de  máscaras  africanas  e  polinésias,  as  produzidas
pelas    etnias    indígenas    da    Amazônia    continuam
desconhecidas  do  grande  público,  apesar  de  todo 
esforço de antropólogos desde o século XIX

As viagens de Karl e Wilhelm von den Steinen (1884 e 1887), Hermann Meyer (1896 e 1899) e Max Schmidt (1901) pelo rio Xingu realizaram excelentes descrições das máscaras encontradas entre os índios do Brasil central. As coleções de máscaras e indumentária indígena obtidas por esses homens (bem como as obtidas por Spix, Martius e Koch-Grünberg no alto Amazonas) foram parar nos museus etnológicos de Berlim, Leipzig e Stuttgart, na Alemanha. Esse material daria origem a uma série de estudos sobre a distribuição e variação estilística de máscaras existentes entre as etnias indígenas no território brasileiro. De acordo com Alfred Métraux, o uso de máscaras cerimoniais é largamente difundido em toda a América do Sul, tendo sido identificados quatro centros do ponto de vista de técnicas e materiais de confecção: 1) região andina (altiplano do norte da Colômbia e partes do Peru e da Bolívia); 2) noroeste da Amazônia (alto rio Negro, leste do Peru, bacia do Solimões); 3) Amazônia central (região dos rios Xingu e Araguaia); 4) Patagônia (em particular, a Terra do Fogo). Entre as populações indígenas da América do Sul, o uso de máscaras sem o acréscimo de vestes elaboradas está restrito atualmente às culturas andinas. Até meados do século passado, as populações indígenas da Terra do Fogo fabricavam máscaras conoidais de casca de árvore e pele de foca. Uma armação de gravetos coberta com pele era esticada no alto da cabeça para fazer um chapéu cônico decorado com desenhos geométricos que frequentemente se estendiam sobre o corpo nu e untado do usuário. (imagem acima, máscara de entrecasca Jurupixuna)


“É também significativo o fato de que,
em  praticamente   todas   as   culturas   indígenas
sul-americanas,    as   máscaras   sejam   universalmente
utilizadas     com     acompanhamento     musical.     [Em    O
Cru  e  o  Cozido    e   A  Via   das   Máscaras,]   Lévi-Strauss
afirma   que   ‘o  canto   e    os    instrumentos     são    os
equivalentes  acústicos  daquilo  que  as  máscaras
 representam     a     nível     plástico’”(6)

Entre as tribos do noroeste amazônico, mais especificamente os Aruak e Tukano do sistema fluvial Uaupés-Cuduiari, as máscaras são fabricadas com entrecasca de árvore e utilizadas como um traje que recobre tanto a cabeça quanto o corpo, até abaixo dos joelhos do dançarino. Máscaras de líber (tururi no tupí do Amazonas) são encontradas entre os Witôto do noroeste do Peru, incluindo os Bora e os Muinave, bem como entre os Yágua, Okaina e Tukúna. Na Amazônia central, de modo geral, as máscaras são feitas com folhas de buriti ou babaçu (embora se encontrem máscaras circulares tecidas de algodão com franja de buriti entre os Bakairí, Awetí, Trumái e Kamayurá). Berta Ribeiro enfatiza que, além das máscaras de líber, os “índios brasileiros” fazem também máscaras de madeira (os Xinguanos e os Tapirapé) e de palha trançada (Xinguanos, Karajá e Timbira). Máscaras compostas de uma peça de madeira plana, ornamentada com desenhos, posta sobre o rosto e uma franja de buriti são igualmente utilizadas pelas etnias Mehináku, Bakairí e outros grupos do alto-Xingu. Os Timbira orientais do rio Tocantins, no Maranhão, usam máscaras trançadas com flabelos de buriti. Ribeiro explica ainda que as descrições, seja do material de confecção ou de seu significado intrínseco, adquirem importância na medida em que o significado das máscaras só aflora quando encontramos a vinculação entre elas e os referentes que lhe são exteriores: mitos, papéis rituais e sistemas de organização social (7). (imagem acima, máscaras de Aruanã, índios Karajá, ilha do Bananal, fotografia Pedro Lobo)



Amazônia Noroeste e Central


 (...) Tal como os mitos, as máscaras não podem ser interpretadas em si
 e  por  si,   como   objetos  isolados” 

Claude Lévi-Strauss (8)

O preparo de líber de entrecasca de madeira desenvolveu-se especialmente entre as tribos vivendo ao logo dos afluentes do alto Amazonas e no leste da Bolívia, na região em torno dos rios Guaporé, Mamoré e Beni. Kurt Nimuendajú que essas tribos empregam geralmente o líber de determinadas espécies de Ficus (tururi). Troncos de 20cm de diâmetro são segmentados e postos para secar até que a casca se solte e possa ser removida como uma peça tubular inteiriça - vários tubos são costurados uns aos outros, formandos os braços e pernas.


Devido a este processo de produção, todas as vestes rituais que utilizam esta matéria-prima no noroeste amazônico possuem o mesmo formato básico: um capuz tubular recobrindo a cabeça e o corpo até os joelhos, e mangas que se estendem até abaixo dos cotovelos. Algumas dessas máscaras, como a dos índios Kobéwa, grupo Tukano do noroeste amazônico, possuem painéis com formas geométricas retratando as características físicas do ser representado. Mesmo a etnias que não possuem máscaras propriamente ditas tem soluções próximas. É o caso dos Barasâna estudados por Stephen Hugh-Jones durante a década de 70 do século passado. Esses índios utilizam a pele do macaco gritador (Bugio) e da preguiça na ornamentação ritual da cabeça, cuja função é a referencia a “muda de pele” do iniciante masculino experimentada como um processo de menstruação. Para Hugh-Jones, essas peles na cabeça são homólogas às máscaras jurupari, dos Tariâna, observadas por Coudreau no final do século XIX e por Koch-Grünberg no começo do século passado.



Desde as expedições de Martius e Spix no século XIX há relatos sobre os Tukúna, a respeito de máscaras feitas com a fibra do tururi e utilizadas no rito de iniciação feminina (no qual são arrancados os cabelos das moças) por ocasião de sua primeira menstruação. A participação de dançarinos mascarados ocorre em outras cerimônias dos Tukúna vinculadas a ritos de passagem. (nascimento, perfuração das orelhas e casamentos). Em cada caso, vestir e desvestir a máscara simboliza uma “mudança” de pele semelhante a “muda de pele” menstrual pela qual os homens Tukúna passariam na época da iniciação. “Para os Tukúna, o ato de mudar de pele, objetivado pelo uso da máscara, representa um processo de transformação repetido em cada rito de passagem, sendo comparado ao ciclo de morte e renascimento” (9). As máscaras Tukúna são tidas como símiles de animais-duendes que teriam comidos um grupo de caçadores dessa tribo. Posteriormente, esses duendes foram mortos e seus semblantes retratados em máscaras utilizadas em rituais relacionados ao processo de maturação e degeneração do corpo humano. O elemento preponderante no simbolismo incorporado ao uso de máscaras entre os Tukúna gira em torno de uma luta entre natureza e cultura e do constante transformação de entidades naturais em produtos culturais (e vice-versa). Enquanto os Kobéwa recorrem a desenhos geométricos, as máscaras Tukúna são capuzes zoomórficos representando animais quadrúpedes, peixes, pássaros, além de alguns seres sobrenaturais. (imagens acima, máscaras Juruparí, Ticuna [Tukúna?] eTukuse,  Waura; abaixo, índios Ticuna durante ritual, Belém do Solimões, Terra Indígena Évare I, Amazonas. Foto Jussara Gruber , 1978)


As expedições alemãs realizadas em fins do século XIX nos rios Xingu e Araguaia produziram descrições consideradas excelentes a respeito dos estilos de máscaras da Amazônia central. Contudo, foi preciso esperar até a segunda metade do século XX para que os antropólogos nos informassem a respeito do contexto ritual no qual tais máscaras eram utilizadas. Do ponto de vista dos materiais usados, a grande variedade redunda em estilos tecnológicos distintos, que podem ser encontrados em praticamente todas as sociedades Xinguanas em virtude do intercambio entre elas (que se estende também à coreografia, vestuário e cantos). Embora madeira, algodão e penas sejam usadas, pode-se dizer que, em maior ou menor grau, todas as máscaras são de palha de buriti ou babaçu. Diversos animais importantes para a economia dessas sociedades são representados através de pantomimas mascaradas. A forma da máscara pode imitar a cabeça do animal ou conter desenhos que apontam características anatômicas do animal (como as máscaras de jacaré feitas em madeira pelos Mehináku e as de peixe merexu dos Bakairí), além da imitação do som do animal pelo dançarino. William Murray Vincent agrupou as máscaras da Amazônia central em seis tipos mais comuns:


1) Máscaras de madeira quadradas e planas, tendo uma saia de palha de palmeira presa à borda inferior. Toma a forma de um rosto humano e será pintada com formas geométricas que reproduzem o contorno ou partes do corpo de certos animais. A máscara Ypé ou “Cara Grande”, dos Tapirapé, consiste numa prancha de madeira e saia de buriti, mas tem forma de meia lua, sendo revestida com cera de abelha onde são pregados mosaicos de plumas de araras; 
2) Máscara ovalada Koahálu, encontrada entre os Bakairí, Awetí, Kamayurá e Trumái. Consiste numa armação de gravetos coberta com pano de algodão e franja de fibra de palmeira, frequentemente recebendo desenhos geométricos [como no exemplo]. Círculos de cera podem representar nariz, boca e olhos; 
3) Máscara Wamnõrõ [máscara Tamanduá], com formato de cone de palha de buriti entrelaçado cobrindo todo o corpo, com apenas uma franja no topo. Foi encontrada entre os Karajá e Tapirapé;
 4) Máscara cilíndrica ou coloidal representando um peixe, feita de talas entrelaçadas de palmeira recobertas por mosaico de plumas, um apêndice de penas e uma saia de buriti. Registrada entre os Karajá e Tapirapé;
5) Indumentária de palha de babaçu trançada recobrindo todo o corpo. Encontrada entre os Kayapó e Karajá ela representa, para os primeiros, espíritos me-karón, ou donos da água; 
6) Um efeito de mascaramento é obtido entre os Jê setentrionais e centrais ao colar penugem de gavião no rosto e no corpo. Os Apinayé conseguem efeito equivalente colando faixas verticais de lanugem ao corpo. Entre os Borôro ocidentais, os caçadores às vezes representavam o espírito da onça cobrindo o corpo com a pele e, inclusive, a cabeça desse animal. 



As máscaras estão associadas às artes do corpo como a forma suprema de lhe conferir expressividade dramática. Com estas palavras o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro definiu o “fenômeno estético” do mascaramento, defendendo também a tese de que a máscara é, ao mesmo tempo, o artefato e a figura viva, visível, do sobrenatural. De acordo com Darcy Ribeiro, o máximo de expressividade artística será exigido das máscaras em função de seu caráter duplo, ao mesmo tempo simples artefato fabricado por alguém e ser sobrenatural, que detém em si toda a potência do sagrado. A máscara jamais será um retrato: “o animal, anta, jaguar ou jibóia, que se vê e se reconhece na máscara é, de fato, o ‘bicho’ sobrenatural que ali está revestido da forma em que se mostra, para atrás dela se esconder” (10). Na hora de pintar a máscara que construiu, o índio do Xingu se recolhe ao local propício para exorcizar ali os espíritos que irão possuí-la. Por outro lado, depois da cerimônia do Kwarìp (Kuarup, Quarup), a tora-máscara que representava o Criador volta a ser apenas mais um tronco de árvore, que será rolado para fora da aldeia pelas crianças. (ao lado, máscara-esteira, Kanela e Timbira, em selo postal brasileiro)


São sempre os homens que se mascaram, explicou Darcy enquanto enumerava mais alguns exemplos da utilização de máscaras entre os índios do Brasil: no noroeste do Amazonas, os Tukâno (Tucano) montam enormes cerimoniais de máscaras, onde de 30 a 50 figurantes encarnam bichos da floresta ou as potências do sexo; periodicamente, no Araguaia, mascarados Karajá (na dança de máscaras do Aruanã), encarnam heróis míticos; no Xingu, homens mascarados reafirmam o domínio do feminino pelo masculino; as aldeias Borôro são assaltadas por bandos de mascarados que apavoram as mulheres e roubam meninos (com o intuito de retirá-los dos mundos infantil e feminino e integrá-los no mundo dos homens) (11).


 Embora    Darcy    Ribeiro     tenha    afirmado,
ao  considerar   os   índios  do  Brasil,  que  máscara
é coisa  de  homem,  isso  não  significa  que  o  sexo
feminino não tenha nenhuma relação com elas

“Diversos autores mencionam o cuidado dos índios da Amazônia central no preparo de suas máscaras, enfatizando o extenso tempo exigido para a seleção e processamento das matérias-primas e a atmosfera geral de sigilo que envolve todo o processo de manufatura (...). Assim como os mitos sobre o roubo de flautas sagradas e máscaras de dança são comuns às culturas do noroeste da Amazônia, os enredos míticos da Amazônia central referem-se frequentemente a um tempo mitológico em que o segredo do mascaramento era conhecido apenas pelas mulheres, que o utilizavam para explorar os homens. Mais tarde, estes descobrem o segredo, tirando-lhes as máscaras pela força, e submetem as mulheres para sempre (...). A presença desse mito em toda a América do Sul parece estar relacionada com a utilização cerimonial das máscaras como elemento marcante da parafernália ritual de iniciação masculina (...). Com efeito, para os Xavante, que compartilham esse mito, na dança Wamñõrõ, as máscaras ‘simbolizam a própria iniciação... dizem que são wapté í-wa’ru ‘fazem amadurecer os iniciados’” (...). Os homens, ao controlar as máscaras, usurpam a capacidade transformativa natural inerente ao sexo feminino. Fazem-no, porém, em caráter metafórico e estritamente cultural, uma vez que, ao contrário do processo natural da menstruação, ele está sujeito à sua influência e controle diretos. Assim sendo, embora as transformações representadas pelo início e volta periódica da menstruação sejam tidas como muito poderosas, as metamorfoses provocadas pelas máscaras - que podem ser manipuladas e realizadas à vontade – representam a aquisição de um poder mais alto que aquele sobre o qual o fenômeno do mascaramento se modela” (12) (imagem acima, máscara de entrecasca Jurupixuna, envolve toda a cabeça do portador)



A Máscara, o Rosto e o Corpo 



Máscaras 
asseguram    a 
pertença  da  cabeça 
ao   corpo,   mais  do 
que enaltecem 
um rosto

Gilles Deleuze e
Félix Guattari

A antropóloga Maria Heloisa Fénelon Costa considerou discutível a sugestão de que o conceito de rosticidade elaborado por Deleuze e Guattari não seria aplicável aos indígenas. De acordo com Costa, os dois autores parecem se referir a qualidades semelhantes às da persona segundo o sobrinho de Émile Durkheim, Marcel Mauss, onde se reúnem cabeça (individual) e máscara (social): “O ‘civilizado’ imprimiu, sobre o pano de fundo da cultura, sinais correspondentes a determinações sobre papéis sociais e sobre comportamentos previamente esperados e orientados. ‘Fisionomias de professora e aluno, de pai e filho, de operário e patrão, de policial e cidadão, de acusado e juiz’” (13).



Tais fisionomias, afirmaram Deleuze e Guattari, não se aplicariam aos “primitivos” teriam cabeças mais humanas e belas justamente porque não tem rostos e não precisam deles. O rosto não é um universal, embora o Ocidente o trate como tal: o poder maternal durante o aleitamento (a mão e o seio se reterritorilizam no rosto), o poder passional que passa pelo rosto do amado, o poder político que passa pelo rosto do chefe, o poder do cinema que passa pelo rosto da estrela e o close-up, o poder da televisão... A individuação é dependente de um rosto, não o contrário. “Não dizemos certamente que o rosto, a potência do rosto, engendra o poder e o explica. Em contrapartida, determinados agenciamentos de poder têm necessidade de produção de rosto, outros não” (14). (imagens acima e abaixo, máscara dança yowma, peixe pirarara, Mehináku, também encontrada entre os Wauja[Waurá], provavelmente utilizada com função distinta)


Entre  os  indígenas  amazônicos,  várias 
 máscaras  não  se  restringem  à  cabeça,  recobrindo
todo o corpo. Talvez seja possível relacionar esses casos
 à   afirmação   de   Gilles   Deleuze   e   Felix  Guattari,   para
quem   a   consciência    de    separação   entre cabeça  e
 corpo, bem como a individualização da primeira são
 fenômenos próprios da visão ocidental (15)

Para Deleuze e Guattari, isso não aconteceria porque poucas coisas passam pelo rosto. Sejam as pinturas, as marcas na pele e as tatuagens (dos indígenas), todas consagrariam a multidimensionalidade dos corpos. Mesmo as máscaras asseguram a pertença da cabeça ao corpo mais do que enaltecem um rosto – e aqui Deleuze e Guattari incluem todas as máscaras, não apenas aqueles exemplos amazonenses em que a máscara se estende para incluir a roupa do dançarino. No código das sociedades primitivas, a cabeça humana pode pertencer ao corpo, posto que os códigos dessas culturas se refiram ao corpo e não ao rosto (se refiram à aptidão do sistema corpo-cabeça para devir, para receber almas ou as repelir). Nem todos os agenciamentos de poder têm necessidade de reproduzir um rosto (rostificar), mas colocam o corpo em contato com devires animais (especialmente com o uso de drogas): os devires animais referem-se a um espírito animal, espírito-jaguar, espírito-pássaro, espírito-ocelote, espírito-tucano, que se apoderam do interior do corpo ao invés de lhe criar um rosto. Os casos de possessão, Deleuze e Guattari insistiram, expressam uma relação direta das vozes com o corpo, não com o rosto. As organizações de poder do xamã, do guerreiro, do caçador, frágeis e precárias, são ainda mais espirituais porque passam pela corporeidade, pela animalidade, pela vegetabilidade. Tudo bem ter cabeças se elas não têm rostos, o problema do rosto (no sentido negativo que Deleuze e Guattari imprimem à concepção ocidental) é que ele rostifica o corpo.


Mas é evidente que a máscara também pode produzir rostificação, para tal bastará que a utilizemos com o intuito de dissimular um sujeito (curiosamente, esta é sempre a função das máscaras no Ocidente: disfarce). Neste caso, afirmam Deleuze e Guattari, o corpo já estará total e complemente rostificado. Ao invés da máscara assegurar a pertença da cabeça ao corpo, e seu devir-animal, aqui ela é instituição (uma verdadeira máquina de rosticidade, porque é parte da produção social de rosto), o realce do rosto (um rosto despótico significante): é quando a máscara se torna o rosto em si mesmo ao substituir um suposto significante (algo que desempenhará o papel tranquilizador de referente), a abstração ou operação do rosto (neste caso, sugerem Deleuze e Guattari, a máscara rostifica os corpos como o fariam nossas roupas e uniformes ocidentais). É neste sentido que, mesmo mostrando ou revelando, a máscara geralmente será utilizada com o intuito de esconder ou dissimular. Inumanidade do rosto, Deleuze e Guattari declaram (em oposição à inumanidade do pré-rosto entre os assim chamados primitivos), já que, em sua opinião, o rosto jamais supõe um significante ou um sujeito prévios. (imagem acima, máscaras Tukuse nas Festas de Apapaatai, Wauja [Waurá]; imagem abaixo Aristóteles B. Neto, 2001)



Hierarquia e Arte na Floresta Amazônica? 





(...) ‘Culturas da
máscara’ são muito
comuns nos trópicos 
sul-americanos,    onde
uma       imperturbável
serenidade    superficial
esconde uma turbulenta
guerra de emoções  que
outras culturas, como a
nossa, mostraria mais
abertamente     em 
seus  rostos  (...)” 

Peter G. Roe (16)






Ao trabalhar com o conceito de persona, a proposta teórica de Claude Lévi-Strauss não se encaixa na hipótese de Deleuze e Guattari. A pintura corporal (e facial) também funciona como uma máscara, o fato de não se tratar de um objeto ou vestimenta que se coloca sobre o corpo parece ser apenas um detalhe. Em seu estudo O Desdobramento da Representação nas Artes da Ásia e da América, Claude Lévi-Strauss acredita ter encontrado um exemplo daquilo a que chamou de “culturas de máscaras”, tendência que considerava muito difundida entre os índios sul-americanos da floresta tropical. Ao considerar a ocorrência de imagens desdobradas (figuras de seres com dois corpos de perfil ligados por dois rostos confrontados) entre culturas muito separadas no tempo e no espaço (índios da costa noroeste da América do Norte, China arcaica, Maoris da Nova Zelândia, os primitivos da Sibéria e Kadiwéus do Pantanal, no Mato Grosso do Sul), Lévi-Strauss percebeu que elas representam a organização social. Lévi-Strauss concluiu que a função da decoração facial nessas culturas coincide com a das máscaras, apresentam a persona, papel social que se sobrepõe ao indivíduo (e o esconde). A máscara cumpre essa dupla função de dissimular o indivíduo e, ao mesmo tempo conferir-lhe maior significação (dualidade entre o ator e seu papel) (17). (Imagem acima, a entidade letani figura no ritual hetohokÿ (“casa grande”), realizado pelos Javaé (Tocantins). Nos anos 1990, este ritual, que marca a entrada dos jovens para o mundo da casa dos homens, foi retomado. Foto: Patrícia de Mendonça Rodrigues, s/d; imagem abaixo, no alto, índios Tukúna segundo iconografia de Paul Marcoy, 1869; abaixo, festa da moça-nova. Índios Tukúna, iconografia de Henry Bates, 1892)



Ocorre que, essas sociedades (cuja característica paralela principal são traços hierárquicos fortes: dualismo, castas, metades, etc.) que fazem uso da imagem desdobrada, não importando se através de tatuagem e pintura facial (como entre os Maoris e os Kadiwéu) ou máscaras (índios da costa noroeste e antigos chineses), são o que Lévi-Strauss chamou de “culturas de máscaras”. Se a segmentação dessas sociedades em hierarquias é o traço que dá sentido à representação desdobrada (mais do que simplesmente apontar essas imagens como traço comum entre as culturas de máscaras), por outro lado tais imagens apontam também para a capacidade do pensamento mítico proceder à tomada de consciência de certas oposições e tender à sua mediação progressiva. Dito de outro modo, tais imagens cumprem a função de “mediações imaginárias” (18), representam a unidade que esses povos não conseguem alcançar no mundo real. Sabemos que o problema do desdobramento da figura se apresenta sempre que procuramos representar um objeto tridimensional numa superfície plana de duas dimensões (talvez o exemplo maior seja os problemas os mapas geográficos, cuja função é representar no papel uma bola redonda: o globo terrestre). Contudo, enfatiza Lévi-Strauss, no caso das representações desdobradas (e das “sociedades de máscaras”) estamos tratando com a superfície tridimensional por excelência, onde a decoração e a forma não podem ser dissociadas nem física nem socialmente: o rosto humano.

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