No idioma do Antigo Egito, não havia uma palavra
específica que designasse o termo “máscara” (1)
Das muitas tradições africanas da máscara, talvez a mais conhecida seja aquela praticada apenas numa pequena região do continente. Talvez devido à antiguidade ou às diferenças estéticas (hipóteses que não resistem a uma análise criteriosa), infelizmente essa tradição da máscara chega a ser citada nos livros e revistas sem que se faça nenhuma referência ao fato de que se trata de técnicas desenvolvidas por uma cultura africana. A primeira característica que salta aos olhos em relação à tradição das máscaras no Antigo Egito é que elas tinham outra função senão a religiosa. Disfarce ou dissimulação das feições do rosto não era seu objetivo, direcionado exclusivamente para a elevação do portador ao nível da divindade, o que incluía tanto as máscaras representando animais, ocasionalmente usadas pelos vivos, quanto os capacetes funerários colocados nos corpos mumificados dos mortos. Contudo, de acordo com John Taylor, além do fato de que em egípcio antigo não existisse uma palavra específica para “máscara”, devido à utilização de matérias perecíveis que deixaram pouco ou nenhum traço arqueológico, a maioria das utilizadas naquela época e naquele lugar não sobreviveu - representações artísticas (pinturas e baixos ou altos-relevos) e inscrições seriam ambíguas demais para resolver o enigma, inspirando mais perguntas do que respostas. Outro fato que pode ter sido determinante em relação à escassez de evidências é o fato de que estamos mais bem informados a respeito dos rituais executados nos grades templos, enquanto as simpatias religiosas realizadas pelos camponeses (com suas máscaras fabricadas com material barato perecível) são relegadas ao segundo plano (2). (imagem acima, close da máscara mortuária de Tutancâmon; original Andrea Jemolo; imagens abaixo, à esquerda, máscara funerária de mulher pertencente à realeza da 18ª dinastia; à direita, máscara funerária de Hornedjitef, vivo durante o reinado de Ptolomeu III Evérgeta {246-222 a. C.}; fotografias British Museum)
No Egito antigo, a promessa de imortalidade não era apenas
privilégio dos poderosos. Todos precisavam colocar máscaras
funerárias em seus defuntos, já que se tratava de importante
elemento da passagem para o reino divino da Eternidade (3)
privilégio dos poderosos. Todos precisavam colocar máscaras
funerárias em seus defuntos, já que se tratava de importante
elemento da passagem para o reino divino da Eternidade (3)
Certa dificuldade de compreender do que Taylor está falando está no fato de que não nos damos conta que a maioria absoluta das máscaras egípcias que conhecemos tão corriqueiramente constitua equipamentos funerários, não dando conta de explicar por quem e como eram utilizadas as máscaras no mundo dos vivos – além disso, muitas delas chegaram até nós, constituindo registros arqueológicos importantes. As máscaras colocadas nas cabeças das múmias quase sempre reproduzem feições humanas, embora no estado divino que pretendem possuir depois da morte – geralmente relacionado a Osíris e o Deus Sol. Com feições estereotipadas, a maioria dessas máscaras de múmias era produzida em massa. As exceções são as máscaras mortuárias de pessoas da realeza, como é o caso de Tutancâmon, em cuja máscara alguma semelhança poderia existir. É curioso que ao mesmo tempo a perda da cabeça fosse a desastre mais temido pelos egípcios no outro e mundo, ao mesmo tempo em que a idealização das imagens do defunto era uma regra, seja em estátuas nas tumbas, caixões antropoides ou máscaras de múmias. De fato, atuando como substitutas da cabeça, máscaras forneciam proteção contra a eventualidade da decapitação na outra vida, entre outras funções em relação à garantia de vida após a morte.
“No antigo Egito, se acreditava que os espíritos de pessoas importantes retornariam e viveriam como múmias em suas tumbas. Durante os setenta dias dos procedimentos de embalsamamento, os sacerdotes usavam a máscara de Anúbis, o deus da mumificação. As máscaras podem ter tido duas funções: ao invocar os poderes de Anúbis através de mascaradas, os sacerdotes podiam preparar com sucesso o espírito do falecido para a eternidade; em segundo lugar, a máscara de nariz comprido [porque representa um chacal] pode ter protegido os embalsamadores dos odores desagradáveis e do pó do Natron utilizado no processo de mumificação. Uma máscara mortuária foi colocada no rosto da múmia, assegurando a seu espírito uma vida eterna. Provavelmente, o espírito do falecido foi transportado para o mundo espiritual através da máscara” (4) (imagem abaixo, exemplo das primeiras máscaras de múmias; fotografia, British Museum)
Desde as primeiras verdadeiras máscaras de múmias,
a importância em relação à cabeça do morto já era evidente.
Na falta de ouro ou impossibilidade de pintar de dourado, a riqueza
material do defunto será representada pela cor amarela
a importância em relação à cabeça do morto já era evidente.
Na falta de ouro ou impossibilidade de pintar de dourado, a riqueza
material do defunto será representada pela cor amarela
De acordo com Taylor, as primeiras máscaras verdadeiras de múmias (imagem acima) surgiram entre o 22º e o 21º séculos a. C., mas seus precursores podem ser reconhecidos em tumbas da época do Império Antigo (2686-2181 a. C.). À cabeça já era dispensada atenção nesse período, feições humanas podiam ser pintadas diretamente nos panos que embrulhavam a múmia ou modeladas com gesso diretamente sobre as bandagens (tratamento por vezes aplicado ao corpo inteiro durante a Quinta e a Sexta dinastias). Este procedimento no princípio da tradição culminaria no desenvolvimento de máscaras separadas para múmias, cobrindo a cabeça e os ombros do cadáver, tendo sido encontrados exemplos em tumbas datadas do Primeiro Período Intermediário e Império Médio (2181-1650 a. C.), por todo o Egito e até em Mirgissa ao sul, na Núbia. Os rostos eram pintados de amarelo, vermelho ou ouro, e os olhos às vezes incrustados. No caso dos homens, muitas vezes barbas e bigodes, enquanto as mulheres tinham seus seios nus representados em abas típicas dessas máscaras, que se alongavam na direção do tórax e das costas – embora os textos antigos se refiram a ela como mulher, a rainha Hatshepsut, que reinou entre 1490-1480 a. C., sempre foi representada em estátuas como um homem, incluindo barba e, às vezes, pênis (5). Algumas dessas máscaras contêm inscrições dos Textos dos Sarcófagos – as quais, revisadas a partir do Império Novo (1550-1070 a. C.), serão incorporadas ao Livro dos Mortos. (abaixo, máscara mortuária de Tutancâmon; fotografias, Andrea Jemolo)
Na passagem 531, algo ou alguém se dirige à máscara: “Saudações a você cujo rosto é amável, Senhor de visão... Amável rosto que está entre os deuses!”. O texto segue, identificando partes da máscara com divindades ou com os barcos em que o Deus sol viajou (portadores do potencial para a ressurreição): “Seu olho esquerdo é o barco noturno, seu olho esquerdo é o barco diurno, suas sobrancelhas são (aquelas de) Enneade (os nove deuses da história de criação da Heliópolis), sua testa é (aquela) de Anúbis, a nuca de seu pescoço é (aquela) de Hórus, as mechas de seu cabelo são (aquelas) de Ptah-Sokar...”. Uma versão do texto está gravada na máscara de outro de Tutancâmon (na aba da parte traseira, dos ombros até a altura das costas, dividida pela trança estilizada que desce do capacete): “Você está diante de Osíris, ele vê graças a você, você o guia para boas estradas, você castiga para ele os confederados de Seth, para que ele possa derrotar seus inimigos diante da Enneade dos deuses...”. Aqui o doente é Osíris (que foi morto por seu irmão Seth e ressuscitou), acima de todos os outros o deus identificado com a chave para o renascimento. A descrição da máscara como “cabeça misteriosa” levava os egípcios a identificar a cabeça com o deus sol, aquele que clareia as cavernas subterrâneas quando desce para o submundo à noite, iluminando com seu rosto dourado brilhante e trazendo nova vida para aqueles que lá habitam. Portanto, a máscara aparelha os doentes com aquilo que é necessário para uma passagem segura à vida após a morte – não apenas o cabelo azul (acreditava-se que o cabelo das divindades fosse desta cor), colar e carne dourada de um ser divino, mas os atributos físicos de todo uma gama de deuses específicos. Isso o identificava simultaneamente com Osíris e Re, o deus sol – uma garantia dupla de ressurreição. (imagens abaixo, máscaras funerárias para mulheres; à direita, datada de 1325-1224 a. C., provavelmente da época de Ramsés II, fotografia David Ulmer; à esquerda, máscara de Henutmehit, de Tebas, 19ª ou 20ª dinastia, 1295-1069 a. C., fotografia British Museum)
As máscaras de múmias do Império Médio marcaram o início de uma longa tradição que continuou, apesar de interrupções, até o século IV depois de Cristo. Influenciaram também, tanto técnica quanto iconograficamente, o desenvolvimento do caixão antropoide. Os primeiros caixões mumiformes assemelhavam-se a extensões da máscara. De fato, as funções de ambos continuariam ligadas durante os séculos seguintes. Por novecentos anos (1200-300 a. C.) o caixão antropoide, ostentando uma representação idealizada do rosto do morto, predominava nos funerais egípcios, ao passo que as máscaras de múmias eram utilizadas apenas eventualmente. O último grande florescimento da tradição da máscara de múmia no Egito chegaria durante o governo dos reis ptolomaicos (305-30 a. C.), estendendo-se durante os séculos do governo romano, quando começa a se verificar uma fusão entre os elementos faraônicos e a arte do mundo mediterrâneo.
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